Decorria o ano de 1983. Eu estava no penúltimo ano de uma banal licenciatura, que destilava o seu tédio em turmas silenciosas e mansas. Um mês de junho claro, amarelado e quente
regia o meu sôfrego desapontamento na Faculdade de Letras de Lisboa. Tomara o
partido - sensato, de resto -, de passar tanto ou mais tempo na sala da Biblioteca Nacional do que nas
salas da faculdade.
As aulas na faculdade… As aulas! Como eram, na sua maioria, fastidiosas! Aulas de chumbo, pesadas. Aulas de
tira-dentes, perdão, de tira apontamentos. Aulas sem asas. Era assim: entrava-se
nas salas de aulas, os professores falavam, os alunos escreviam. Era um diálogo
marreco de canetas.
Muitos professores falavam para si
próprios. Liam os seus apontamentos, teciam comentários jocosos – para nós
incompreensíveis – piada para um, farpa para outra, espinho para outro.
Adornavam. Vertiam espadas. Faziam redemoinhos de palavras. Havia sorrisos
ridículos, olhares mesquinhos, helicópteros de inveja.
Como pesava o calor de junho, nas
nossas cabeças cheias de palavras! Os professores professavam. Os alunos
escreviam. Redigi infindáveis livros de datas, apontamentos ilegíveis, definições,
nomes pomposos de escritores e críticos literários.
Era assim o ofício de estudante,
naqueles anos oitenta. Tive, contudo, naquele mar imenso de platitude, a sorte
de conhecer figuras ímpares, generosas, que voavam à superfície do mundo como
boias salvadoras. Sem o contacto fugaz com essas personalidades de eleição,
talvez tivesse naufragado num oceano de tédio e aborrecimento, e queimado os
olhos ao sol das praias da Costa da Caparica, em vez de secá-los, em noites de
estudo e de trabalho, à luz lívida das lâmpadas dos candeeiros pousados nas secretárias
de pinho, pregando letras nas páginas A4 brancas.
Entre essas figuras salvadoras,
cabe-me salientar a de o escritor-professor Urbano Tavares Rodrigues.
Era um cavaleiro da liberdade. Sem
cavalo. Guardo-o no baú da memória devido a uma aula excecional.
Eu estava a desenhar padrões abstratos no meu caderno de apontamentos. Junho apertava-me os pulmões. Respirava com dificuldade. A sala de aula estava cheia, saturada de perfumes fortes e de suor. A turma semiadormecida, como era hábito, ouvia com elevada sobranceria os comentários que o cavaleiro Urbano ia cinzelando à volta da obra Madame Bovary de Gustave Flaubert.
Em Lisboa, era hora de sesta. A
cidade dormitava, exausta de calor. Sonhava-se com água salgada, praias
fofinhas, maresia. Na penumbra da sala de aula, as palavras do professor não conseguiam
levantar voo. Caiam para o chão mal saiam da sua boca, como passarinhos frágeis
caídos do ninho protetor. Urbano Tavares Rodrigues, sentado atrás da sua secretária de zinco,
protegido por óculos que tapavam mais de metade da sua cara, segurava o romance
de Flaubert na mão direita e desenhava, com a esquerda, palavras sublinhadas no
ar espesso, comentando, lenta e calmamente, pensamentos e sentimentos das principais
personagens do romance. Os óculos, uma armação acastanhada, com lentes grossos
e largas que ampliavam o azul dos seus olhos, atraiam o olhar da componente
feminina da turma, que se perdia na contemplação do céu divino evocado pelo azul
celeste dos olhos do professor.
A sua doçura, os seus gestos
pousados, a sua calma branda, a sua voz encantatória, as suas metáforas
surpreendentes, cativavam os corações femininos da turma, encantados por um
charme que tinha algo de aristocrático.
A aula, nessa tarde, arrastava-se
como tantas outras. Não fosse a fulgurância de certos comentários, na ressaca
do calor, a nossa atenção evaporava-se, de olhos centrados no vagaroso passar
das agulhas dos relógios. A turma parecia uma manada mansa deitada à beira de uma
nascente, a descansar.
De repente, uma observação do professor Urbano, ecoou em mim, despertando-me do arrasador torpor em que permanecia. As ideias agitaram-se. Levantei o braço. Contra todas as convenções académicas, interrompi o mestre. Perguntei
ao Urbano se era possível estabelecer uma relação entre a atitude de Madame
Bovary e o mito de Dom João.
O que eu fui fazer…
O professor ouviu as minhas
palavras sacudirem o ar, vindas lá do meio da sala. O silêncio tornou-se sufocante. O
mestre pousou o livro na secretária, baixou por alguns segundos os olhos,
concentrado. Ao contrário do que era habitual, levantou-se. Deslocou-se até
mim. Os seus olhos brilhavam.
_Uma questão curiosa e interessante!
- disse. Seu nome? - perguntou.
_Hugo.
O cavaleiro regressou aos seus
aposentos académicos. Descobri então uma faceta inesperada do
professor-escritor. Durante quase meia hora fez viajar a turma embevecida pelos
mitos e pelas grandes obras da literatura. Estabelecia pontes. Refutava teses. Desbravava
caminhos. Sugeria pistas. Tricotava nós de sentido. Desfazia evidências. Falava
música. Pintava palavras. Punha a nu pensamentos. Nós ouvíamos, exaustos, surpreendidos,
atordoados. Já não estávamos na cidade de Lisboa que transpirava monotonia. Sentíamos que
tínhamos chegado ao continente literatura. Urbano parecia um cavaleiro audaz,
destemido, leal, ilustre.
Foram trinta minutos palpitantes. O professor foi brilhante. Quando deu por terminada a deambulação pelo mundo das ideias,
fez-se um silêncio vivo, povoado de mistérios, de fugas, de ritmos, de
iluminações. Com inesperada modéstia, Urbano agradeceu a pergunta.
E nós, estonteados pelo calor e
pela aventura, naufragados numa ilha poética, esmagados pelo virtuosismo, a sabedoria,
as faíscas da inteligência, permanecíamos na quietude dos iluminados.
Ninguém teve o discernimento de
agradecer ao mestre a fenomenal deambulação literária.
Foi há 33 anos, numa tarde em que
Lisboa jazia inerte, esmagada pelo calor atroz de um junho impiedoso.
Nunca é tarde, contudo, para
agradecer os grandes feitos dos nossos geniais escritores ou artistas, porque
são eternos.
O que desejo?
Desejo, hoje, que a luminosa improvisação
de Urbano Tavares Rodrigues, cavaleiro da liberdade, dada a mais de trinta jovens
estudantes universitários, concentrados numa cavernosa sala de aula da
Faculdade de Letras de Lisboa, numa insuportável e calorenta tarde de junho de
1983, não seja esquecida.
Obrigado Urbano. Mestre.
Hugo Vaz, ex-aluno reconhecido
Nota: O professor, jornalista e escritor Urbano Tavares Rodrigues cavalgou para outras pradarias no passado dia 9 de agosto, no Hospital dos Capuchos, em Lisboa, cidade onde nascera a 6 de dezembro de 1923. Deixa vasta obra publicada.
Para saber mais sobre Urbano Tavares Rodrigues
O Cavalo da Noite
de Urbano Tavares Rodrigues
O que se espera de uma relação de amizade? Lealdade, constância, partilha, ensinamentos que nos ajudem a sermos melhores. Assim é a relação do rapaz, protagonista desta história, com o seu cavalo. Começam por ser bons companheiros e acabam por ser tão profundamente amigos que a memória do narrador não consegue dissipar as impressões que este lhe deixou.
O texto de Urbano Tavares Rodrigues tem a delicadeza e vigor necessários para conceder a esta história uma beleza e dignidade imperturbáveis.
O Alentejo como pano de fundo. Os episódios mais marcantes da passagem da infância para a juventude. Liberdade, coragem, fraternidade, orgulho, compaixão.
Os grandes temas do texto foram traduzidos em aguarelas por Raffaello Bergonse.
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