Francisco Moita Flores
UMA VIDA É FEITA DE VÁRIAS VIDAS
“Todos os
dias devíamos ouvir um pouco de música, ler uma boa poesia, ver um quadro
bonito e, se possível, dizer algumas palavras sensatas.”
Johann Goethe
Há escritores que não precisam de apresentar os seus livros:
são eles próprios livros. Há escritores que nos dão a ilusão de falar, quando,
na realidade, estão a ler-nos, em primeira mão, uma história que ainda não
escreveram, mas que em si transportam: a narrativa dos seus encontros, das suas
vivências, dos seus comprometimentos.
Quem tem a sorte – quase que se poderia dizer, sem recear um certo exagero aristocrático, o privilégio – de, numa amena conversa vadia, pautada de
emoção, riso, ironia e sabedoria, ouvir um escritor com a qualidade e inteligência
de Francisco Moitas Flores, partilhar um passado todo ele feito de histórias, onde
as personagens tanto podem ser Luís de Camões, Camilo Castelo Branco, Eça de
Queirós, o Padre António Vieira, as namoradas, a mulher, os próprios filhos, gentes
fraternas e solidárias, e Francisco Moita Flores em pessoa, vivencia um
extraordinário momento de uma grande riqueza humana.
A palestra de Francisco Moita Flores dada no dia 23 de abril,
no auditório da Escola Secundária com 3.º Ciclo Santa Maria do Olival, graças
ao apoio da Papelaria Nova de Tomar, ao Grupo Leya, e à professora
bibliotecária Maria de Deus Monteiro, foi um momento único, uma extraordinária
viagem literária e humana, onde o interesse e a atenção da assistência eram
permanentemente espicaçados através de observações subtis, comentários
profundos e sinceros, relatos ora pungentes, ora divertidos, reflexões, e sábios
conselhos. As palavras de Francisco Moita Flores reconciliam-nos com a vida. A
vida parece simples quando ele a conta. As pessoas são transparentes,
entendíveis. Algumas trazem em si bondade, solidariedade, outras sofrimento,
dor, indignação. A vida lê-se como as páginas de um livro.
Francisco Moita Flores contou-nos, por exemplo, como superou,
enquanto estudante bolseiro, a dureza da vida na Suíça, graças à entreajuda e a
compaixão de imigrantes lusos. Contou-nos como trocou, na mochila que trazia no
regresso a Portugal, roupa por livros, e não por ouro ou chocolates. No
aeroporto, o seu corpo vergava, apesar do seu esforço, sob os quilos de livros
que as suas magras ou nulas poupanças não permitiam expedir e trazer consigo para
a pátria. Contudo, graças à intervenção do comandante do avião em que iria
embarcar, que entendeu o drama daquele estudante sem um tostão, mas rico de
saber, a mochila cheia de livros acabou por ocupar um lugar vago, ao seu lado,
como pessoa feita de papel e de tinta e não de carne e osso. A todos um dia agradeceu
Francisco Moita Flores, quando sopraram na sua vida ventos mais favoráveis. Assim,
o piloto bibliófilo ainda hoje é amigo do escritor.
Nós somos tudo ao mesmo tempo, observou Francisco Moitas
Flores. O mundo é unidade. Cada um contém em si, a cada instante, o bem e o
mal, a alegria e a tristeza, a vida e a morte. Omnipresente, esta última, na
vida de Francisco Moitas Flores. Foi do contacto com a evidência e a crueza da
morte que o homem retirou a urgência e a força de viver intensamente o
presente. Como o passado nos escapa e o futuro não nos pertence, é no momento
presente que devemos concentrar a nossa força de viver. Francisco Moita Flores
não tem tempo para perder tempo. Leva uma vida regrada. Toma o tempo de estar
com os outros. De conviver, de partilhar. A vida é breve, brevíssima diz. Não
podemos, por isso, desperdiçar cada instante que passa. O passado não volta. A
vida é uma repentina passagem. A única certeza do ser humano é a consciência da
sua finitude. A nossa única certeza é a morte, assegura Francisco Moitas
Flores. Tudo o resto são hipóteses, conjunturas, incertezas, indefinições.
Como era o Dia Mundial do Livro, Francisco Moita Flores abordou
a importância do livro e das leituras nas nossas vidas. Falou da importância do
livro enquanto objeto com existência própria. Um livro é algo de palpável, com
cheiro próprio (o da cola, o da tinta), coisa que facilmente se deixa
transportar para todo o lado. O livro de papel é uma das maiores criações da
humanidade. Que alma têm, em comparação, os livros digitais, os conhecidos ebooks (assim mesmo, em inglês, para soar mais "in")? São ficheiros
virtuais, sem vida, sem veias, mais para serem consultados do que lidos. Frente
a um ecrã de computador, de Tablet ou
de e-reader não estão reunidas as
condições para uma leitura profunda e reflexiva. Um livro é como uma garantia da nossa da nossa liberdade, porque não está dependente da industria tecnológica devoradora de recursos e de energia.
Que devemos ler? Que nos ensinam os livros? A estas
perguntas, poucos até hoje ouvi responder de forma tão clara e pertinente como
Francisco Moita Flores. Temos de ler um pouco de tudo, para podermos perceber
de que gostamos mais. Temos de ler para saber mais, não para saber tudo. Sabendo
mais, poderemos fazer melhores escolhas já que, como ele muito bem vincou,
perante a jovem e atentíssima assistência, toda a nossa vida é feita de
escolhas, de opções. Nesse perpétuo tomar de decisões, quem sabe mais escolhe
melhor. Melhores escolhas farão melhores vidas. Por isso nos pediu Francisco
Moita Flores que não deixemos de amar os livros, porque isso equivaleria a
deixar de nos amarmos a nós próprios.
Foram perto de duas horas e meia de conversa com Francisco
Moita Flores. Não dei, não demos, pelo passar inexorável do tempo. Havia tantas
histórias na história que nos contou. Tanta humanidade. Tanta empatia pelos
outros. Tanta sabedoria… como há muito não via.
Francisco Moitas Flores reconciliou-nos com o livro e a
leitura. Sobretudo a leitura dos nossos grandes autores, que evocou com uma
admiração invulgar. Ouvir Francisco Moitas Flores, viajar com ele numa leitura
pessoal da vida e das relações humana foi uma das mais belas maneiras de
celebrar o Dia Mundial do Livro. Em Tomar, Francisco Moita Flores deixou sementes
de leitura e sementes de saudade. Em Tomar deixou a promessa de voltar.
E como desejaríamos que esse dia fosse já hoje! Até lá, temos
o universo ficcional de um dos nossos grandes escritores para descobrir, como
um oásis no meio da desolação. LER MOITA FLORES? UMA URGÊNCIA.
Hugo Vaz
Ler, por exemplo:
Salvar uma região de uma praga pode ser uma tarefa épica, bem como combater a escuridão do pensamento com a LUZ da razão. Uma obra cativante, acessível sem ser piegas, com mistério, aventura por terras do Douro. Um livro sobre a coragem, o amor, a fidelidade. Um livro sobre uma mulher, a Dona Antónia, que acima de tudo luta pelo bem comum, e não apenas e só pelo bem de alguns. Admirável, pois.
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