sábado, abril 18, 2020

LER O MUNDO ATUAL ATRAVÉS DE ALBERT CAMUS


     Está disponível no Expresso Online (25.03.2020), o artigo de opinião Ler em Tempo de "guerra" da Dr.ª Maria de Jesus Cabral, que faz uma interessantíssima leitura dos tempos atuais através do prisma da obra La Peste de Albert Camus, um dos maiores escritores e pensadores do Séc.XX, e Prémio Nobel da Literatura (1957).

Sinopse

Na manhã de um dia 16 de abril dos anos de 1940, o doutor Bernard Rieux sai do seu consultório e tropeça num rato morto. Este é o primeiro sinal de uma epidemia de peste que em breve toma conta de toda a cidade de Orão, na Argélia. Sujeita a quarentena, esta torna-se um território irrespirável e os seus habitantes são conduzidos até estados de sofrimento, de loucura, mas também de compaixão de proporções desmedidas. Uma história arrebatadora sobre o horror, a sobrevivência e a resiliência do ser humano, A Peste é uma parábola de ressonância intemporal, um romance magistralmente construído, que, publicado originalmente em 1947, consagrou em definitivo Albert Camus como um dos autores fundamentais da literatura moderna. 

 
     Transcrevemos, de seguida, o artigo de opinião da Dr.ª Maria de Jesus Cabral retirado do site do Expresso:


 
"Há livros que ficam em nós, pela idade ou pelas circunstâncias em que os lemos, pelo modo como as suas palavras nos tocaram no momento, ou pela forma como, muitas vezes, regressam, inesperadamente, colocando, como em ressonância, a narrativa, configurada em acontecimentos e personagens ficcionais, e o nosso presente mais imediato. 


“É difícil acreditar nos flagelos quando se abatem sobre nós” [On croit difficilement aux fléaux lorsqu’ils vous tombent sur la tête] escreve Albert Camus em A Peste (La Peste, no original, publicado em 1947). Escritor e jornalista francês nascido na Argélia, Prémio Nobel da literatura em 1957, Camus retrata, neste romance-crónica narrado na 1ª pessoa do médico Bernard Rieux, que também é a personagem principal, o modo como uma epidemia devastadora se apodera duma cidade do Norte de África (Orão, no romance), a situação de quarentena e a vigilância sanitária, a crescente impotência e falta de meios perante o monstro sem nome, progressivamente associada ao mal. Se no início a epidemia parece apenas representar um interregno na vida “normal” de uma cidade pacata, perante o avanço insidioso e impiedoso do flagelo (onde se pode ler uma alegoria da França ocupada pelo nazismo) cinco personagens vão desenvolver uma força chamada solidariedade, travar – e revirar a situação. Um médico, Bernard Rieux, um viajante-estrangeiro Tarrou, um jornalista Rambert, um eclesiasta, o padre Paneloux e um funcionário administrativo, Joseph Grand, revelam, página a página, como a acção concertada e um heroísmo comum (“sem ilusões”), é preferível à letargia. Que por vezes “amar o que não conseguimos compreender” é a atitude mais corajosa e mais consequente de salvação. Que a solidariedade tem de substituir-se à individualidade, tal como o esforço colectivo tem de superar a prostração. A epidemia não é um combate contra um monstro sem rosto, mas é um esforço contínuo, e renovado. “As grandes convicções valem exércitos”, como também nos diz Fernando Pessoa.


Ler em tempo de guerra… Em muitos passos, A Peste de Camus parece multiplicar em espelho a nossa realidade presente. Mas se encontro (ou melhor reencontro) interesse em reler esta obra, no contexto actual de emergência sanitária que ameaça a humanidade, altera os horizontes do nosso quotidiano, nos confronta com a nossa vulnerabilidade, e justifica, até, a comparação com uma guerra, não é só pelas semelhanças ou pontes que cria com a nossa realidade, com a nossa história, com a nossa cultura. Sabemos que a literatura é como que um espelho da realidade, reflecte o mundo e permite reflectir sobre o mundo. Mas des/a/fiando um pouco mais a metáfora visual, o poder da leitura vai mais além, em termos de (auto)conhecimento: ler dá-nos lentes multifocais sobre os fenómenos: de perto (pela imersão própria ao jogo da leitura, e da linguagem) mostra-nos tudo mais real que a realidade; de longe, favorece o despreendimento crítico, aquele passo atrás que nos permite abarcar diferentes perspectivas sem as confundir, e com esse olhar, ter uma visão mais sistémica. Por isso também, a leitura é uma poderosa ferramenta para o difícil exercício de nos colocarmos no lugar do outro, a chamada alteridade, única capaz de nos levar aos confins da humanidade. 


Trata-se, por conseguinte, de um modo de inscrição na comunidade humana, numa das formas mais intensas, mais profundas e mais misteriosas de cultura: a da linguagem. Assim como em todos nós haverá certamente um louco, assim também em todos nós haverá um médico, um agente de saúde, um ser humano a lembrar-nos que o homem desempenha um papel singular no curso da História, e que (ainda) há muitas formas de fazer solidariedade. 


Lembra-nos, para terminar, Paul Ricoeur, quando recentemente nos diz que as obras de arte, por abrirem múltiplos caminhos ao pensamento, "têm a capacidade de se descontextualizarem e de se voltarem a contextualizar, que é porventura a melhor aproximação do sempiterno". Daí a sua relevância ética, e política."

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