Todas as iniciativas de incentivo à leitura deveriam ser incentivadas. O seguinte texto de Guiomar de Grammont, directora do Instituto de Filosofia da UFOP e autora de vários livros, é um sentido apelo à leitura usando para tal uma ironia desconcertante.
Guiomar de Grammont
A pensar nos jovens leitores do Kispo, aqui se relembra o significado da palavra ironia:
ironia
(do latim ironia, -ae, e do grego eironeía, -as, dissimulação, ignorância)
1. Expressão ou gesto que dá a entender, em determinado contexto, o contrário ou algo diferente do que significa.
«A pensar fundo na questão, eu diria que ler devia ser proibido. Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso (...) em que vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe foi destinado no corpo social. Não me deixam mentir os exemplos de Dom Quixote e Madame Bovary. O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros, que jamais existiram, meteu-se pelo mundo afora a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.
Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante (...). Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, dedicar-se-ia ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-la com cabriolas da imaginação. Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria (...) o conhecimento. Mas para que conhecer-se se na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais? Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem, necessariamente, ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido. Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Transportam-nos a paraísos misteriosos, fazem-nos enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Fazem-nos acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais percebidas. É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar as nossas realidades cruas.
Agatha Christie
Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os vossos filhos, isso pode levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência.
Professores, não contem histórias, isso pode estimular uma curiosidade indesejável (...).
Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos num mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verosimilhança (...). O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, projecto, manuais etc. Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incómodas.
É esse o tapete mágico, o pó de perlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é mais subversivo do que a leitura? É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns (...). Seja em filas, no metro, ou no silêncio da alcova...
É esse o tapete mágico, o pó de perlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é mais subversivo do que a leitura? É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns (...). Seja em filas, no metro, ou no silêncio da alcova...
Ler deve ser coisa rara, não para qualquer um. Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos. Para obedecer não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil. Além disso, a leitura promove a comunicação de dores, alegrias, tantos outros sentimentos... A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna colectivo o individual e público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro.
Sim, a leitura devia ser proibida. Ler pode tornar o homem perigosamente humano.»
Guiomar de Grammont, In: PRADO, J. & CONDINI, P. (Orgs.). A formação do leitor: pontos de vista. Rio de Janeiro - Argus, 1999. pgs.71-73.
VÍDEO LER DEVERIA SER PROIBIDO
Guiomar de Grammont disse:
Na sua opinião, o que é essencial na arte de ensinar?
Guiomar - A abertura para novas experiências. Isso exige a humildade do "sei que nada sei", de Sócrates. É o que trará a compreensão de que todo aluno, toda pessoa é capaz de produzir conhecimentos novos e surpreendentes sobre qualquer tema. O conhecimento produzido nas escolas e na sociedade, em geral, é muito convencional e repetitivo. Por isso, muitas vezes, encontramos mais a possibilidade de inventar com originalidade entre as crianças.
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